Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

JOGANDO CONFETE: a coluna literária de JOTABÊ MENDONÇA

"Pense-me antes de fazer-te" poemas de Harildo Catunda, Editora Fumacê, 278 páginas, R$ 38,90






Assim que vi a capa, meu primeiro reflexo foi de lançar o exemplar pela janela do décimo-quarto andar onde sobrevivo. A alucinante concepção gráfica da capa, um orgasmo desvairado de cores carnavalescas exaltadas, lembrou-me as piores criações de arte psicodélica do início dos anos 70, e encheu-me de um asco legítimo, repentino e violento. Porém, antes do gesto fatal, detive-me ainda e, pela primeira vez, li sobre a escabrosa "obra-de-arte" desse Pollock tupiniquim — cujo nome evitarei citar aqui — o título em negativo: Pense-me antes de fazer-te. O intrigante título teve em mim o efeito de um tétano. Estancou-me a mente e o braço, abortando o meu súbito ímpeto de lançar o livro pela janela. Após longo hausto de ar, voltou a rondar-me Dona Curiosidade e, muito cuidadosamente, abri o livro. Na página de rosto, reconheci o autor: Harildo Catunda, um dos poetas mais criativos da nova geração. Confesso que, naquele instante, agradeci ao equivocado grafista por ter exarado o título em letras tão visíveis, e tão legíveis.

Harildo Catunda já impressionara bastante a crítica especializada quando do lançamento do seu Cavalos raramente nada dizem, de 1991, e muitas vozes apontavam já no então jovem poeta piauiense, o arauto maior de uma certa poesia nacional. As duas obras suas que se seguiram — A Lua riu do Mundo (1993), um jogo de sonoridades lúdicas com seu próprio nome, e Fui (1997), uma coletânea de neo-sonetos pós-modernos prefaciada por Caetano Veloso — confirmaram sobejamente o vaticínio dos críticos, consagrando Catunda no Panteão das maiores figura da poética pós-apolítica de língua portuguesa. 

Na recente obra, o autor mantém-se fiel à sua retórica permeada de absenteísmos, simbolismos e de, não raro, provocações. Prevalece, também, o lado prático de um amoral desejo de conforto que não hesita em afirmar que "...um ático de frente pro mar / uma sereia on the rocks / me diz, quem há de rejeitar?". 


É bem visível aquilo que a poesia de Catunda deve à imagem concreto-surrealista, mais do que ao surrealismo em geral. E o ilustra bem no poema Verão Abaixo de Mim: "Improviso-me entre bananas celestes/ línguas do Leste e bardanas/ lúbricos manjares de búlgaros e magiares/ mas no fundo mesmo todos cabras da peste." Um outro poema, baseado num processo de enumeração desconcertante: "Uma mosca nos dois lábios/ das três secretárias exiladas de quatro/ é motor imóvel a cinco marchas enfiadas/ minhas seis vontades de fornicar a sete varas." Veja-se como esta poesia, mesmo na enumeração, supera o descritivo (e, por conseguinte, também o confessional) para desviar-se, aliás, da asserção subjetiva de forma absolutamente coerente, polarizando uma única ocorrência do Eu. Toda a sua força está na instauração desse sentido, criando aberturas a horizontes jamais insuspeitados.

Na sonorosa ode Atriz Atroz Atrás Há Três, cabalmente inspirada no conhecido mote atribuído a Emílio de Menezes, a predileção de Harildo Catunda pela confrontação assimétrica das sonoridades urde-se de maneira invejável, através de uma tapeçaria de indagações implícitas, descentralizando-se à medida em que as vertentes dos imprevisíveis dissolvem-se na periferia das ambigüidades: "Nas volutas azuis do tabaco / esse vácuo de luz nas disputas / é cruz entre as putas e o macaco..." 

A força maior desta obra está no saber, no sabor e na sobra da descoberta que o autor tão bem consegue transmitir, entre vínculo e prosódia, aldeias poéticas e cidades prosaicas, pedras polidas e gente incivilizada. Numa escrita solta, fresca e, por vêzes, bem-humorada, o apolítico Harildo Catunda revela-se-nos simultâneamente — notem bem! — um provocador, um esteta, e um descobridor que reflete ao sabor da pena, arrebanhando idéias mais do que personagens e, com isso, prendendo o leitor ao fio da meada e do Tempo.  

Talvez por isso, este crítico aqui se mostre tão entusiasmado e, quiçá arrebatado, com o remate do livro, concluindo que Pense-me antes de fazer-te é, afinal, a utopia do futuro das letras atlânticas. Depois de ler este Juízo Afinal, diga-me quem não terá vontade de mergulhar nesta indescritível viagem: É impossível de dar gosto a todo um / a frieza da neve que para uns dosa a noiva / para outros é a inimiga que os lança a lodos / é o golpe fatal de Diana e sua goiva, / é o meu saltar para lugar nenhum / e no ar inda gritar: que se fodam todos!


Ler Harildo Catunda é tomar uma cerveja no bistrô de uma Manhattan em pleno deserto. Por isso, não resisto a pedir a Miguelzinho Vianna, o meu caro editor da Fumacê: por favor, Miguel, faça uma nova edição deste livro mas, pelo amor de Deus, mude o grafista, mude a capa!